Atriz vai estrear na direção teatral e ainda tem três filmes e uma novela a caminho
Mauro Ventura
— Eu me poupo desse charme de falar “não quero mais, daqui a pouco vou parar”. No máximo é um desabafo de uma tarde de verão. Fisicamente você pode até dizer “puxa, mais uma vez sair por aí afora”, mas o espírito te leva com muita alegria.
Ela não celebra nem lamenta a velhice. Como diz, nem idealiza nem deprecia a idade. Por isso, evita os extremos, seja eufemismos como “melhor idade”, seja palavras como “velho”, contaminadas pelo preconceito.
— Melhor idade? Imagina. Você vai perdendo a audição, a visão, o paladar, sua pele vai secando. Mas é uma realidade, que vai piorar se você começar a achar que é uma desgraça. É da natureza e ponto, vamos tocar a vida.
Por outro lado, levou um susto outro dia quando alguém, falando a seu respeito, disse: “Mas é uma octogenária.”
— Achei a palavra horrenda. É verdade que sou, mas que palavra brutal.
Ela acredita que o segredo para encarar o envelhecimento é encontrar um canal, “algo que alimente o ser humano”. No caso dela, são dois canais:
— O primeiro é uma predisposição que tenho para a vida. O outro é ter uma vocação e realizá-la, porque ela é inarredável. Nos encontros com jovens atores, sempre digo: “Desistam. Agora, se você não conseguir se levantar mais da cama, comer e respirar, aí volte e vá fazer essa profissão.” Porque se você ficar à morte só pode voltar para viver. Mas aguente as consequências, porque é uma profissão marginal e marginalizada, e vai ser sempre. No caso do teatro, seu trabalho só existe enquanto alguém que viu você fazer estiver vivo.
Fernanda está com projetos de cinema, teatro e TV em 2013. Um ano atípico? Não.
— Sempre tenho pelo menos duas dessas modalidades funcionando.
Mas, desta vez, há uma novidade. Ela estreia na direção com a peça “Nelson Rodrigues, por ele mesmo — Um depoimento”, que entra em cartaz em meados do ano. A ideia veio quando leu o livro de Sonia Rodrigues, filha de Nelson, que compilou documentos, crônicas, entrevistas e textos do pai.
— Achei fantástico. Ano passado, no centenário, todas as suas peças foram montadas, mas quase ninguém falou do Nelson, dessa figura que no fundo é a sua grande criação.
Ela ensaia há um mês com Otávio Augusto, que não virá caracterizado.
— Ele não vai botar barriga, terno azul marinho, sapato marrom, meia branca, gravata bordô, peruca. Não vai falar de boca fechada, lentamente. É justamente para ficar na essência de Nelson. A peça é um depoimento para uma plateia, é um falar um pensamento. Minha finalidade ao tocar nesse material é ser absolutamente fiel, respeitá-lo a ponto de não sair dele. Não tem dramaturgia, não tem uma fala que não seja do texto dele — diz ela, que organizou tudo em blocos, como as redações de jornal, a política, o amor, sua vida.
No cinema, Fernanda filmou ano passado em Pelotas, no Rio Grande do Sul, “O tempo e o vento”, com direção de Jayme Monjardim, que estreia em outubro. Rodou no início deste ano “Boa sorte”, de Carolina Jabor, ainda sem previsão de lançamento. E, no fim de 2013, entra no set de “Do fundo do lago escuro”, de Domingos Oliveira. Na TV, fez em dezembro a dona Picucha no especial “Doce de mãe” (cotado para virar seriado em 2014) e estará em “Saramandaia”, que começa a ser gravada em abril e vai ao ar em junho.
Apesar de transitar com igual desenvoltura por cinema, teatro e TV, ela deixa clara uma diferença de tratamento.
— Eu me ofereço ao teatro, vou em busca dele, fustigo-o. Bato na porta e peço para entrar. Nos outros meios de arte, eu sou solicitada. Não saio me oferecendo para o cinema e para a TV.
O que não é tão comum hoje em dia.
— Atualmente, pelos cursos todos que eu vejo, 80% dos alunos estão visando o mundo eletrônico.
Ela fala de como é “muito pesaroso” ver as mortes em sua geração, aquela entre 80 e 90 anos, formada por atores que se “forjaram buscando personagens”.
— De uns poucos anos para cá, morreram Paulo Autran, Sérgio Viotti, Gianfrancesco Guarnieri, Sérgio Britto, Italo Rossi, Renato Consorte, Chico Anysio, Walmor Chagas, Fernando (Torres, seu marido). É uma limpeza assustadora. São peças que não têm reposição. Fernando foi um louco por teatro, uma vida de entrega, dirigindo, atuando e produzindo.
Foram 60 anos ao lado de Fernando, que morreu em 2008. Ela não quis se mudar do apartamento onde moraram juntos nos últimos 12 anos, em Ipanema.
— A casa tem muito dele. Poltrona, livros, há toda uma memória aqui dentro que me acompanha com muita emoção. Tem os retratos dele. Converso com Fernando. Mas não sou uma velhinha maluca — diz, com bom humor.
São coisas como “poxa, mas está difícil o dia hoje”, “hoje foi pesado”, olhando para as fotos. Sair do apartamento que acumula tantas lembranças não vai ser fácil, mas faz parte dos planos.
— Acho que uma hora quero morar perto da Nanda (sua filha, a atriz Fernanda Torres), na Lagoa. Para estar junto dela e ela junto de mim. E também pelo Cláudio (seu filho, o diretor Cláudio Torres, que mora no Humaitá). A família é muito interligada, e uma hora você vai precisar de um suporte. Você tem que se organizar para isso, sem morbidez, mas com objetividade.
Fernanda Montenegro foi ver “Amor”, do austríaco Michael Haneke, Oscar de melhor filme estrangeiro. Saiu impactada com a atuação de Jean-Louis Trintignant, de 81 anos, e Emmanuele Riva, de 85 anos, que foi indicada ao prêmio de melhor atriz — caso também de Fernanda, em 1999, por “Central do Brasil”.
— São extraordinários. Você vê até onde pode chegar uma atuação. Vê a predisposição em mexer, aceitar, entender e se integrar a zonas insalubres.
No filme, Georges e Anne têm seu tranquilo cotidiano radicalmente afetado pela doença dela, que sofre um AVC.
— Não sabia que era nessa dimensão a demonstração do ser humano em seu estertor. Se soubesse, talvez não tivesse ido ver. Mas aí teria perdido tamanho grau de interpretação.
Ela fala de como é assistir a um filme com a temática do envelhecimento e da doença protagonizado por personagens da mesma geração.
— Você dá graças a Deus por não estar naquele estado, mas, ao mesmo tempo, reconhece que de repente talvez possa entrar naquela situação e ficar na área de perigo.
Fernanda conserva a independência física, mental e financeira. Quando não está viajando, anda diariamente pelo calçadão de Ipanema. Na hora de subir três ou quatro andares, usa a escada. E ainda tem as exigências da profissão.
— Nada é mais solicitante para o físico do que o palco.
Mas, como diz, nem todos chegam à idade avançada com “pujança de vida”.
— E aí precisam de assistência, de alguém que cuide.
Apoio que muitas vezes não vem. Ela explica que, no caso de uma criança, que ainda não tem domínio de sua estrutura, as pessoas ficam muito felizes em cuidar porque ela está a caminho da vida. Mas, quando se trata de cuidar de alguém que está nos últimos instantes, que só vai piorar, tudo muda. Fernanda reclama desse descaso com a “velhice desvalida”.
— A pessoa não entende que vai para o mesmo lugar. A Humanidade nem sempre tem uma visão da sua falência.
A peça “Nelson Rodrigues, por ele mesmo — Um depoimento” é a única na agenda teatral do ano. Mas, se surgir uma brecha, tem ainda “Viver sem tempos mortos”, com direção de Felipe Hirsch, sobre a vida e a obra de Simone de Beauvoir, que estreou em 2009. Em 2012, a atriz apresentou o monólogo nos CEUs (Centros Educacionais Unificados) de São Paulo, e pode voltar a qualquer momento com ele.
— Recebo pedidos do Brasil todo, de festivais ou não.
Mês que vem começa a gravar “Saramandaia”, remake de Ricardo Linhares para a novela de Dias Gomes. O papel foi criado para Fernanda.
— Faço uma senhorinha que tem uma paixão pelo personagem do Tarcísio Meira. Estava solta aí na vida e veio o convite da (diretora) Denise Saraceni. Achei ótimo, é um projeto de primeira linha.
No filme de Carolina Jabor, “Boa sorte”, roteiro de Jorge Furtado, ela é a avó da personagem de Deborah Secco, soropositiva viciada em drogas.
— O tema geral é como todos somos envenenados por drogas, de todos os tipos, consentidas ou não, do remedinho até a mais pesada. Sou uma avó que foi um das loucas dos anos 1970, que vem se livrando do vício, mas de vez em quando puxa sua maconha, o que pelo menos é mais barato.
No longa de Domingos Oliveira, Fernanda será dona Mocinha, a severa matriarca de uma família. O texto é autobiográfico, e a personagem é inspirada na avó de Domingos. No original é uma peça que foi encenada pela primeira vez em 1980, com direção de Paulo José, e Carmen Silva, Fernando Torres e Fernanda no elenco. Em 2010, o próprio Domingos fez Mocinha.
Em “O tempo e o vento”, baseado na obra de Erico Verissimo, ela interpreta Bibiana na terceira fase, com 90 anos.
Os compromissos impedem que Fernanda se dedique mais a seu Instituto de Artes Reunidas, criado com os dois filhos e sua produtora, Carmen Mello. O escritório funciona no Jardim Botânico, mas ainda falta uma sede. Será um pequeno, mas “sólido”, centro sociocultural com oficinas, leituras de peças e roteiros de cinema, espaço para montagens, debates, exposições, eventos, exibição de filmes de arte, música de câmara e acústica. Também haverá uma escolinha de arte em período integral para crianças de 3 a 6 anos, biblioteca e videoteca, focando a memória do teatro brasileiro em geral e da trajetória de Fernanda, em particular. Ele irá abrigar o acervo da atriz e de colegas de geração que não tiverem onde guardar o seu.
— É preciso que paremos e dediquemos um ano para realmente pôr em prática o instituto. Mas agora estamos empenhados em várias frentes e não conseguimos pensar que ações podemos fazer.
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