domingo, agosto 15, 2010

"É vergonhosa para os gestores a situação de descaso com a cultura"

O músico Esso Alencar e o "Grupo Locau" preparam atos e debates, nos dias 19 e 20, para dicussão sobre políticas públicas culturais para Grande Natal.

Por Débora Ramos
Foto: Elpídio Júnior
Esso Alencar, músico.
Descontentes com o tratamento que vêm recebendo dos órgãos encarregados de fomentar a cultura no estado e na capital, os artistas potiguares estão planejando uma mobilização com objetivo de informar a sociedade sobre a atual situação da cultura do Rio Grande do Norte, descrita pela maioria deles com adjetivos que seriam sinônimos de “caótico” ou “sofrível”.

Nos dias 19 e 20 de setembro, o grupo Locau, que reúne representantes de diversos segmentos artísticos tais como música, teatro e audiovisual, organizou uma programação que envolve atos públicos e discussões. De acordo com o membro-fundador do Locau, o músico Esso Alencar, a iniciativa tem como objetivo principal chamar a atenção para os desafios das políticas públicas culturais da Região Metropolitana de Natal.

“Queremos alertar a sociedade sobre as conseqüências negativas que a negligência por parte dos órgãos o públicos podem acarretar à cultura local. Além disso, nossa meta é propor soluções e direcionamentos para criação de uma política que contemple as necessidades atuais do setor, dos artistas e do público”, resume.

De acordo com ele, os artistas potiguares resolveram unir forças para lutar contra a indiferença tanto da Fundação José Augusto (FJA), quanto da Fundação Capitania das Artes (Funcarte). O movimento, portanto, seria uma resposta às últimas ações destas instituições que, segundo o músico, “não valorizam o trabalho do artista da terra”.

Foto: Vlademir Alexandre
Fachada da Funcarte.

“Depois de passar por diversas situações desconfortáveis, os artistas perceberam que apenas esforço conjunto é capaz de modificar a atual situação da classe no estado e na capital”, disse. Entre os momentos constrangedores vividos pelos atores culturais, ele cita o não pagamento dos editais de apoio à cultura, e a falta de prestígio dos artistas locais em comparação aos nacionais.

“A questão dos editais é um ponto crítico que precisa ser discutido com urgência. Por mais que iniciativas como estas sejam positivas, os órgãos precisam se comprometer a desenvolver esse tipo de política de forma séria e correta, para que isso venha a beneficiar os projetos. E isso não está acontecendo aqui no estado”, afirma.

O problema da falta de prestígio dos artistas locais em relação aos nomes de projeção nacional, por sua vez, foi explicitado pelo músico através de dois exemplos distintos. Uma vez, observa, músicos foram ridicularizados por profissionais da Prefeitura quando questionaram acerca da existência de um camarim, antes de uma apresentação aberta ao público.

“Eles disseram que não era necessário e nos mandaram ir para debaixo de uma arvore”, comentou. A outra situação que ilustra a depreciação dos artistas potiguares são os valores dos cachês. “Por vezes os talentosos músicos locais se apresentam em troca de cachês inexpressivos. Quando temos shows de artistas nacionais, a coisa muda de figura. Porque eles merecem mais do que a gente?” questiona.

Confira entrevista do músico Esso Alencar, concedida ao portal Nominuto.com:

A Carta ao Respeitável Público foi lida por você durante a 62ª Reunião Anual da SBPC. O que é essa carta exatamente e qual o objetivo deste documento?
A carta tem a intenção de aproximar a produção artística local a público maior do que o que já prestigia esse segmento. O público que hoje freqüenta as atividades desenvolvidas pela produção local ainda é muito restrito. Por isso, a carta visa atrair mais atenção do público em geral ao que vem sendo produzido pelos artistas locais. Ela é o nosso convite à população a prestigiar o que está sendo feito por aqui. Além disso, o documento também tem a finalidade de informar as pessoas sobre a atual situação enfrentada pela classe artística da cidade, que é de total descaso e desrespeito.

Foto: Elpídio Júnior

Que situação é essa exatamente?
A situação que nós vivenciamos, como artistas, aqui na cidade, é lamentável e equivocada. O poder público não tem tido condições de desenvolver uma política pública cultural consistente, planejada. O que observamos atualmente, tanto em nível estadual quanto municipal, são medidas aleatórias e que não produzem resultado. É muito comum você chegar nos órgãos e eles dizerem: “nós estamos organizando a casa”. Esse discurso, entretanto, já está enraizado e mesmo após esta dita organização, ainda não vemos o interesse dos gestores em criar políticas de planejamento cultural. O que nós precisamos é de uma política de estado, e não de políticas de um determinado governo. É necessário uma política que contemple a opinião dos artistas, da própria administração e da população em geral. Esse seria o primeiro passo.

Na sua opinião, qual é o principal erro cometido pelos gestores, quando o assunto é o trato com a classe artística?
O principal erro é o despreparo. Eu vejo que grande parte dos gestores são escolhidos por questões político-partidárias, portanto, estas pessoas são, na maioria das vezes, desqualificadas e inaptas para os cargos que ocupam. Então, o erro dos governos começa por aí; por não se preocupar em colocar uma pessoa realmente qualificada para cuidar da cultura. Diante desta realidade, fica praticamente impossível o diálogo entre os artistas e estas pessoas, que muitas vezes são insensíveis e desconhecem os anseios e as necessidades da classe.

Fale um pouco sobre a mobilização dos artistas. O que a classe pretende desenvolver a partir da programação marcada para os dias 19 e 20 de setembro?
A programação de setembro está desenhada em um formato mais recente, o do flash mob. No dia 19, nós vamos fazer algo que deverá acontecer no fim do dia. Na ocasião, reuniremos os artistas engajados na causa e distribuiremos a Carta ao Respeitável Público à população, em um ponto da cidade, ainda indefinido. No dia seguinte, haverá uma discussão. Neste debate, nós vamos procurar reunir representantes de todas os segmentos artísticos da cidade, tais como música, teatro e artes visuais,e também gestores e representantes da imprensa, para discutir a pauta de uma política cultural para a Grande Natal. No final desta programação, nós estamos prevendo a elaboração de um documento que servirá como norte para a concretização desta política.

Foto: Elpídio Júnior
Quais são as expectativas da classe após a realização deste debate? Vocês acreditam que iniciativas como estas pode levar a discussão da cultura local a um outro nível?
Eu estou crente que sim. Eu acredito que nós nunca tivemos um momento mais propício para colocar o tema em evidência e fazer alguma coisa a respeito. Até porque, hoje a classe está mais amadurecida do que há uns anos atrás e, além disso, novos atores estão envolvidos nesta discussão. Pessoas de sangue novo, com fôlego para se mobilizar. Acredito que neste momento os artistas potiguares começaram a perceber que nós estamos ficando para trás. Esta tomada de consciência faz com que a necessidade de criação de um plano cultural planejado fique evidente. A gente quer acompanhar o ritmo destes outros locais, que já levam a cultura mais à sério. Nesta última década, particularmente, nós presenciamos um crescimento da preocupação do Governo Federal com a produção cultural. O Ministério da Cultura é um órgão atuante, portanto, nós não podemos ficar parados no tempo, estagnados, como estamos atualmente.

Os editais de apoio à cultura são medidas que vieram para impulsionar os mais diversos segmentos artísticos. Na sua avaliação, como funciona a questão dos editais no Rio Grande do Norte e em Natal?
Como costuma dizer a própria Fundação José augusto, na maioria das vezes: "O edital de apoio à cultura é uma dinâmica nova aqui para a nossa realidade". É através dessa frase que eles costumam justificar a ineficiência dessa política de editais aqui no Rio Grande do Norte. Tanto na esfera municipal quanto na estadual, nós podemos perceber que o processo de adoção dessa modalidade ainda é embrionário. Mas o que a gente nota é que isso ainda está sendo muito mal administrado, tanto é que vários artistas contemplados pelo editais que ainda não receberam os valores referentes, estão planejando acionar o Ministério Público, porque, afinal de contas, alguns deles já investiram recursos do próprio bolso nos projetos e agora estão enfrentando dificuldades financeiras. A situação dos editais é crítica.

Além disso, a gente registra aqui a ocorrência dos micro-editais, que são editais de prêmios ínfimos, 2 ou 3 mil reais, que servem apenas para fazer propaganda, uma espécie de publicidade que mostra que a administração pública está “preocupada” e “atuante”, quando o assunto são os editais. Mas estes editais não chegam a suprir as necessidades da maioria dos projetos. Isso, na minha opinião, devia gerar constrangimento no poder público.

E os artistas, não ficam constrangidos quando são tratados com tamanho desdém por aqueles que deviam praticar ações voltadas ao desenvolvimento da cultura?
Eu acho que isso não é constrangimento para o artista, porque ele se desdobra, ele segue lutando, acreditando no que ele faz. Para os gestores, por outro lado, é vergonhoso perceber que Natal e o estado, que possuem rica produção cultural, passam por essa situação de descaso.
Foto: Elpídio Júnior

Vamos realizar um exercício de imaginação. Na sua opinião, se Natal e o estado viessem investindo efetivamente nesta área ao longo dos últimos anos, em que pé estaria a cultura nos dias de hoje?
Eu acho que se a cultura fosse uma preocupação dos governos, tanto municipal quanto estadual, eu acho que teríamos, por exemplo, uma Ribeira verdadeiramente revitalizada e não um projeto de fachada com o qual nos deparamos atualmente. Eu acho também que nós teríamos casas e pontos de cultura escolhidos para funcionar em localidades onde existessem realmente uma atividade cultural relevante. Hoje em dia essa escolha obedece a um critério equivocadíssimo, entregando estes pontos a pessoas despreparadas e que não têm o mínimo de compromisso com o desenvolvimento da cultura. Só para vc ter noção, eu sei de casas de cultura que funcionam como ponto de revenda de Avon. Enfim, citei esses dois casos como exemplo, mas poderia citar outros tantos.

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